segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Propriedade Intelectual

Propriedade Intelectual é um eufemismo estúpido
autor: Cory Doctorow
Publicado no guardian.co.uk, 21 de Fevereiro

"Propriedade intelectual" é um desses termos ideologicamente carregados que podem causar uma discussão só por serem murmurados. O termo não tinha um uso tão alargado até aos anos 60 do século passado quando foi adoptado pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual, um corpo comercial que alcançou estatuto de agência das Nações Unidas.

O caso do uso do termo pela WIPO é fácil de compreender: pessoas que tinham "visto a sua propriedade roubada" são muito mais compreensíveis na imaginação do público que "entidades industriais que tenham visto os contornos dos seus monopólios regulatórios violados", sendo que este termo era o mais comum quando nos referiamos a quebras até à ascendência do termo "propriedade intelectual".

Tem alguma importância a forma como a designamos? Propriedade, é um conceito bem compreendido tanto na lei como nos costumes algo que qualquer pessoa pode compreender sem pensar muito no assunto.

É completamente verdade - e é exactamente por isso que a expressão "propriedade intelectual" é, na raiz, um eufemismo perigoso que nos conduz a todo o tipo de raciocínios errados sobre o conhecimento. As ideias incorrectas sobre o conhecimento são problemáticas na maior parte do tempo, mas são mortíferas para qualquer país que esteja a tentar fazer a transição para a "economia do conhecimento".

Fundamentalmente, aquilo que designamos por "propriedade intelectual" é só conhecimento - ideias, palavras, melodias, plantas, identificadores, segredos e bases de dados. Este tipo de coisa é similar à propriedade de algumas formas: pode ser valorizado e por vezes é necessário investir muito dinheiro e trabalho no seu desenvolvimento de modo a produzir esse valor.

Fora de controlo



Mas também é diferente da propriedade de modos igualmente importantes. O principal não é inerentemente "exclusivo". Se invadir o meu apartamento, posso mandá-lo embora (excluí-lo de minha casa). Se roubar o meu carro, eu posso retomá-lo (excluí-lo do meu carro). Mas uma vez que saiba a minha canção, uma vez que tenha lido o meu livro, uma vez tendo visto o meu filme, eu perco o controlo. Salvo se tiver uma terapia electroconvulsiva, não consigo que deixe de conhecer as frases que tenha acabado de ler aqui.

É esta desconexão que torna problemática a "propriedade" na propriedade intelectual. Se qualquer pessoa que viesse ao meu apartamento levasse uma peça física do mesmo com ela isso faria com que fosse à falência. Ficaria preocupado continuamente com quem me visitasse, faria com que assinassem todos os tipos de acordos invasivos antes de os deixar usar a casa de banho, etc. E tal como uma pessoa que tenha comprado um DVD e tenha sido forçado a humilhar-se com a frase "Não roubaria um carro" é exactamente esse o tipo de comportamento que a conversa da propriedade inspira quando se fala de conhecimento.

Mas há por aí muita coisa de valor que não é propriedade. Por exemplo, a minha filha nasceu a 3 de Fevereiro de 2008. Ela não é propriedade minha. Mas ela para mim vale muito. Se ma raptasse, o crime não seria "roubo". Se a magoasse, seria "trespass to chattels". Temos um vocabulário e conjunto de conceitos jurídicos para tratar com o valor que uma vida humana incorpora.

Além disso, embora não seja propriedade minha, ainda tenho um interesse reconhecido por lei para com a minha filha. Ela é "minha" de alguma forma com sentido, mas também cai na alçada de muitas outras entidades - os governos do Reino Unido e do Canada, o Serviço Nacional de Saúde, a Protecção de Menores, mesmo a sua família alargada - todos podem reclamar algum interesse no que lhe sucede, no seu tratamento e futuro da minha filha.

Flexibilidade e nuance


Tentar encaixar o conhecimento na metáfora da "propriedade" deixa-nos sem flexibilidade e nuance que um regime de direitos de conhecimento teria. Por exemplo, os factos não são passíveis de direitos de autor, e assim ninguém pode ser "dono" do seu endereço, do seu número da segurança social ou do PIN do seu cartão de multibanco. Contudo em todas estas coisas tem um forte interesse e deve ser protegido por lei.

Há muitas criações e factos que caiem fora do âmbito dos direitos de autor, marca registada, patentes e outros direitos que constituem a hidra da Propriedade Intelectual desde receitas a listas telefónicas a "arte ilegal" como os mashups musicais. Estas obras não são propriedade - e não devem ser tratados como tal - mas para cada um deles há um ecosistema inteiro de gente com um interesse legítimo neles.

Uma vez ouvi o representante da WIPO para a associação de difusores europeus explicar, que dados todos os investimentos dos seus membros na gravação da cerimónia do sexagésimo aniversário do raide de Dieppe na Segunda Guerra Mundial, deveriam ter o direito de serem donos da cerimónia, tal como teriam numa peça televisionada ou noutra "obra creativa". Perguntei de imediato porque é que os "donos" teriam que ser ricos com câmaras e não as familias das pessoas que morreram na praia? Porque não os donos da praia? Porque não os generais que ordenaram o raide? Quando se chega ao conhecimento "a propriedade" não faz qualquer sentido - muitas pessoas têm interesse na película da comemoração de Dieppe, mas argumentar que alguém "é dona" não faz qualquer sentido.

O direito autoral, com as suas estranhezas e excepções, foi, durante séculos, um regime jurídico que tentava tratar das características únicas do conhecimento, em vez de pretender ser mais um conjunto de regras para governar a propriedade. O legado de 40 anos de "conversa de propriedade" é uma guerra interminável entre posições intratáveis de propriedade, roubo e tratamento razoável.

Se se desejar alcançar uma paz duradoura nas guerras do conhecimento, chegou o momento de por de lado a propriedade e começar a reconhecer que o conhecimento - com valor, precioso, conhecimento caro - não é detido. Não pode ser detido. O estado deve regular os nossos interesses relativos no âmbito do pensamento efémero, mas essa regulamentação deve ser sobre o conhecimento, e não uma trapalheira refeita do sistema de propriedade.

Este documento foi aqui colocado sob licença: CC

Este documento foi traduzido para francês

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